Definitivamente, o esporte tem um contexto com diversos comportamentos (e pensamentos) a serem combatidos. Algumas minorias, como a comunidade LGBTQIA+, tem uma resistência muito grande para ingressar e, principalmente, permanecer nesse meio. Assim, no dia 17 de maio, comemora-se o Dia Internacional contra a LGBTfobia. A data é celebrada mundialmente, em função da exclusão da homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
O objetivo da comemoração é promover ações de combate ao preconceito e discriminação contra pessoas LGBTQIA+ e conscientizar sobre o respeito às diferentes orientações sexuais e identidades de gênero. Assim, o Futebol na Veia preparou uma entrevista exclusiva com Igor Benevenuto, árbitro central da CBF e árbitro de vídeo-FIFA. Ele foi o primeiro árbitro a se declarar gay no futebol brasileiro e, como poucos, pode falar sobre a sua experiência dentro do futebol.
Índice
- 1 Confira a entrevista exclusiva com Igor Benevenuto, VAR-FIFA
- 2 A evolução do VAR no Brasil
- 3 A decisão de falar sobre sua orientação sexual
- 4 O preconceito (ainda existe) no futebol brasileiro
- 5 Há grandes nomes do futebol brasileiro gays?
- 6 Um conselho de Igor Benevenuto
- 7 Confira a entrevista com Igor Benevenuto na íntegra
Confira a entrevista exclusiva com Igor Benevenuto, VAR-FIFA
O que é ser um árbitro no futebol brasileiro?
Questionado sobre como é ser um árbitro de futebol em um contexto tão complicado como o cenário brasileiro, Igor Benevenuto afirmou que, de fato, o Campeonato Brasileiro é um dos torneios mais complicado do mundo, principalmente quando se trata do trabalho de arbitragem. Além disso, pontuou alguns fatores que dificultam melhores condições para a função, como a não profissionalização dos árbitros no país.
“É muito difícil [ser árbitro no Brasil]. A questão do comportamento dos atletas dificulta bastante poder trabalhar dentro do campo. Outro ponto que pesa também é a arbitragem não ser profissional. Atualmente, a confederação conta com 600 árbitros. Hoje, com a tecnologia, melhorou bastante. Temos treinamentos online todas as semanas, mas ainda faltam incentivos. A imprensa e os clubes preferem criticar e não oferecerem apoio. Isso porque é muito mais fácil transferir a responsabilidade de um problema que está acontecendo, do que você ajudar a resolver o problema. Às vezes tudo que aconteceu na partida é transferido por uma decisão da arbitragem, e nós sabemos que a arbitragem é só um dos contextos envolvidos no resultado. Tem o atleta que erra gol, erra passe, tem o treinador que escala mal a equipe, às vezes o jogador está mal, erra um gol debaixo da trave, o goleiro leva um ‘frango', o jogador perde um pênalti e isso não é colocado no contexto. E, às vezes, é só o equívoco do árbitro que é supervalorizado”, ponderou.
Em seguida, pontuou sobre a relação com o torcedor no Brasil e colocou o comportamento dos adeptos nas redes sociais como um fator que atrapalha a profissão, de uma forma geral.
“Existe uma intolerância muito grande, de modo geral, principalmente no Brasil. A gente percebe que tudo que acontece é superdimensionado, supervalorizado. Existe uma cobrança, especialmente nas redes sociais, na internet, de ameaças e comportamentos inadequados. Eu mesmo fui ameaçado de morte pelas redes sociais. Às vezes [as pessoas] acham que não existe punição para os atos delas e que elas podem fazer o que quiserem”, contou.
A evolução do VAR no Brasil
Já sobre o árbitro de vídeo, tecnologia implementada no futebol desde 2018, mas que começou a ser utilizada no Brasileirão em 2019, Benevenuto ponderou ser “uma criança que está em desenvolvimento”. Ainda de acordo com ele, o imediatismo das pessoas prejudica a utilização do VAR no Brasil.
“Acho que a tecnologia veio em um momento excepcional. Hoje o futebol é diferente. Tudo que acontece dentro do campo é visto. E as pessoas ainda não estão adaptadas, de que com a tecnologia, o futebol ficou diferente. Existe uma cobrança excessiva, essa transferência [de responsabilidade] também, para a questão do VAR. De 2019 para hoje, já evoluímos muito. Temos uma central no Rio de Janeiro que toda semana, oferece capacitações e treinamento.
Hoje, eu farei um jogo pelo Campeonato Brasileiro da Série A, às 18h. Eu chegarei às 13h para treinar e fazer vídeos. Nós já evoluímos muito, mas sabemos que ainda temos que melhorar. Às vezes há um lance que divide opiniões entre os jogadores, torcedores e dirigentes. Eu sempre falo que mesmo acertando, vamos errar para alguém. E, às vezes, as pessoas também cobram algo que elas não sabem. Cobram algo que acham que é daquela forma, mas a regra é bem clara. De uma forma geral, eu vejo minha evolução de quando comecei para agora. Muito em função do treinamento, a repetição ajuda muito. Antes, [os árbitros de vídeo] não tinham tanta confiança, tinha uma demora maior nas decisões. Agora, além de ser mais rápido, há menos interferências nos jogos, ou seja, funcionando cada vez melhor”, afirmou.
A decisão de falar sobre sua orientação sexual
Mesmo sabendo do que haveria de enfrentar, Igor Benevenuto decidiu falar publicamente sobre a sua orientação sexual, ainda atuando no futebol profissional. A primeira vez que o assunto foi tratado publicamente foi no podcast “Nos Armários dos Vestiários”, do GloboEsporte. Depois da publicação, em junho de 2022, o árbitro falou sobre as motivações para trazer o fato a tona.
“Primeiramente, [fui motivado por] uma questão pessoal. Eu já não aguentava mais viver esse personagem hétero com as pessoas e com os meus familiares. Isso gerava um desgaste emocional muito grande. Ter que deitar e pensar coisas do tipo como seria o meu comportamento no dia seguinte, em que determinado local eu iria, não poder me relacionar com uma pessoa e o porquê nasci assim. Já tive depressão e muitas coisas ruins. Eu queria viver em paz comigo, não esse personagem para as pessoas.
Em segundo lugar, eu acho que a partir do momento que estou no meio do esporte, que te dá uma visibilidade muito grande, eu gostaria que as pessoas pudessem perceber que um homossexual, como eu, que estou inserido no meio do futebol, pode estar onde quiser. Essa questão da minha orientação não diminui minha capacidade técnica de trabalhar e mostrar que sou uma pessoa normal, que tenho direito a estar ali, e poder ajudar ouras pessoas que estão ali, no meio, sofrendo. Foi muito importante e mostra que o futebol é um espaço para todos”, contou.
Em seguida, sobre como decorreu o processo de abrir sua orientação sexual publicamente, Igor falou sobre os pontos essenciais para a sua tomada de decisão.
“Levei de quatro a cinco meses para tomar a decisão de falar abertamente sobre. Eu ia fazer a reportagem de forma anônima. Eu tinha muito medo de ser massacrado nas redes sociais, de sofrer algum meio de represália do meio do futebol, eu tinha medo que a comissão da CBF pudesse criar algum tipo de problema, algum tipo de desgaste com eles. E, pelo contrário, eles foram me dando muito apoio e força. O ‘start' para isso foi quando a repórter, Joanna de Assis, teve o contato com o presidente da comissão de arbitragem da CBF, Wilson Luiz Seneme. Liguei para ele, foi quando ele me disse que não teria nenhum tipo de problema e me parabenizou pela minha coragem. E foi a melhor coisa do mundo. Tirei uma tonelada das minhas costas, daquilo que falei no início, dessa pressão, de cada dia ser uma figura diferente, um Igor diferente. Nas redes sociais só tive apoio. Me surpreendeu muito, aparece um comentário ou outro desagradável, mas procurei não ficar lendo, porque isso não ia acrescentar nada na vida”, disse.
O preconceito (ainda existe) no futebol brasileiro
Em relação aos casos de preconceito, seja racial ou homofóbico, vistos nos estádios ou até mesmo nas redes sociais, Igor pontuou as mudanças que pode observar para combater esses episódios. Além disso, destacou a organização das entidades reguladoras e também dos clubes como um fator determinante de transformação.
“Eu acredito que depois da reportagem, as coisas evoluíram muito em termos do apoio da CBF e até dos clubes. Porque tiveram outras reportagens com jogador, com torcedor, ou seja, envolvendo todos os atores que vivem o esporte. O presidente Ednaldo [Rodrigues, da CBF] combate veementemente as questões de preconceito, seja racial, como também a homofobia. Foi criado na CBF um comitê de combate ao preconceito. Temos no regulamento das competições, uma cartilha com determinações para o que fazer, coisa que era mais informal antes”, declarou.
Já dentro de campo de jogo, o árbitro relata um comportamento diferente dos próprios atletas em relação à qualquer tipo de preconceito.
“Hoje os clubes são mais polidos, a imprensa apoia nesse sentido. Havendo também punição para as equipes e para os torcedores [ajuda a diminuir os casos]. Isso ajuda a pessoas que viviam de forma reclusa, a viverem abertamente a sua orientação sexual no futebol”, disse.
Há grandes nomes do futebol brasileiro gays?
Questionado sobre a existências de grandes nomes do futebol brasileiros, que mesmo sem terem falado abertamente sobre o fato, serem homossexuais, Igor Benevenuto foi direto ao ponto.
“Eu já observava e sim, existem muitas pessoas, muitos jogadores, dirigentes e árbitros que são gays. E eu já tive relatos de pessoas que são, mas não têm essa força, não tem essa coragem [de falar publicamente sobre]. Porque, mesmo assim, o meio [do futebol] é preconceituoso. Às vezes, o dirigente, o treinador e até os companheiros de equipe são muito preconceituosos. [Os jogadores] tem medo de haver algum tipo de separação no vestiário, de não serem contratados”, disse.
Entre os mais óbvios motivos para não falarem abertamente sobre sua orientação sexual, o mineiro comentou sobre um relato de um jogador que sentiu o preconceito do contexto futebolístico na pele, mesmo não sendo homossexual.
“Já vi relatos de um atleta que, mesmo não sendo gay, era tido como se fosse. Ele contou que não foi contratado em um determinado clube porque um dirigente disse que iria pegar mal com os torcedores. Eles [os torcedores] são muito preconceituosos e não aceitam”, afirmou.
Um conselho de Igor Benevenuto
Perguntado sobre um conselho a ser dado sobre falar abertamente sobre a orientação sexual, Benevenuto afirmou ser uma decisão que deve ser feita no melhor momento de cada indivíduo.
“É uma decisão muito forte. Ninguém deve abrir isso se não estiver seguro. Isso pode prejudicar ela em um sentido psicológico. A pessoa vai viver melhor, vai ter uma paz mental muito grande. Sem falar que vai poder ajudar a combater, no meio do esporte, do futebol, a homofobia”, pontuou.
Por fim, o árbitro falou sobre ser o primeiro FIFA a se declarar abertamente gay em uma palavra: coragem. Além disso, opinou também sobre a realização da última Copa do Mundo no Catar. Vale ressaltar que o país, segundo seu código penal, considera a homossexualidade como uma prática criminosa, passível de uma pena de oito anos de prisão ou até mesmo de morte sob a “sharia”, que funciona com a legislação.
“Eu me senti muito feliz [em ser o primeiro árbitro vinculado a entidade que se declarou gay]. Eu consegui dar uma visibilidade e isso pode ajudar muitas pessoas. Acho que a entidade FIFA é mundial, muito grande, o nome dentro do futebol é muito grande. Haja vista na Copa, do Catar, onde tivemos muitos problemas, mas tivemos uma abertura. Olho pelo lado positivo, é uma sementinha que plantamos naquele país. Para modificar alguns comportamentos muito desprezíveis que existem. Se fosse antigamente, você não poderia nem pisar, nem falar sobre no país, porque você poderia ser preso ou até morto. Então acredito que [realizar o Mundial] plantou uma semente que no futuro vai render muitas coisas boas”, apontou.