Dos gramados ao asfalto da Sapucaí: o futebol nas histórias contadas pelas escolas de samba cariocas

Depois de contar a história dos vultos nacionais, efemérides, folclore e trazer o negro para os enredos, as escolas de samba também trouxeram o futebol, retratado em fantasias e alegorias.

Carnaval de 1986. Sambódromo da Marquês de Sapucaí, Rio de Janeiro. Segunda noite de desfiles. Na concentração, a Beija-Flor de Nilópolis se preparava para cruzar mais uma vez a passarela. O enredo “O mundo é uma bola” trazia no abre-alas uma menção à Azteca, bola que seria utilizada dali a alguns meses nos gramados mexicanos pelo mundial de seleções daquele ano.

A ideia do carnavalesco Joãozinho Trinta era mostrar que a invenção do futebol não era algo datado e exclusiva criação dos ingleses do século 19. A escola mostrou que civilizações milenares já praticavam algo próximo ao esporte, utilizando-se de cabeças humanas como artefato de competição.

Verdade ou não, a cronologia apresentada pela escola da Baixada, marcou as retinas dos foliões. Não somente pela apresentação plástica, mas pelo fato de que, sob a tempestade que tomou o sambódromo no momento do desfile, os componentes cantaram a plenos pulmões o samba daquele ano.

A crônica esportiva

Não foi a primeira vez que o futebol foi enredo na avenida. Cinco anos antes, a Imperatriz Leopoldinense, fez uma homenagem a Lamartine Babo que, para seus mais antigos componentes e torcedores, foi o maior desfile de todos os tempos da agremiação.

Autor dos hinos dos principais clubes da cidade e atuante na crônica esportiva, Babo transcende o futebol e pode ser pensado como uma referência para a construção de uma identidade cultural brasileira a partir do Rio de Janeiro, no século XX. O enredo foi reeditado pela escola no Grupo de Acesso em 2020 pelas mãos do carnavalesco Leandro Vieira e foi mais uma vez campeão.

Naquele ano de 1981, o Flamengo lotava os estádios. Em novembro foi campeão da Libertadores da América e conquistaria o campeonato mundial no Japão alguns dias depois. Entre as estrelas rubro-negras estava o jovem Zico, o Galinho de Quintino, que em 2014 teve sua biografia nos gramados também contada pela escola do bairro de Ramos.

Ainda nessa linha da crônica esportiva carioca, em 1988, foi a vez da União da Ilha falar de Ari Barroso, da gaitinha e mais uma vez do Flamengo, seu time do coração, com o enredo “Aquarilha do Brasil”.

Os centenários

Os anos 90 nos guardaram ainda mais algumas novidades. Finalmente o tetra da seleção brasileira tão aguardado desde 1970 chegou em julho de 1994. O gol perdido pela Itália na final da Copa virou tema para a comissão de frente da São Clemente, que abriu a maratona dos desfiles em 1995.

Mas a sensação naquele ano foi a Estácio de Sá. A escola, a princípio, já havia até divulgado um enredo, mas após contatar a diretoria rubro-negra, mudou tudo prometendo contar como foram os 100 anos de fundação do Flamengo. A badalação em torno da escola cresceu ainda mais no início do ano, quando chegou à Gávea o campeão do mundo, Romário.

Parecia que a escola entraria com tudo e seria a campeã daquela ano. Mas o desfile, assim como o próprio time rubro-negro, deixou a desejar. Em 2022, foi  o enredo reeditado, substituindo-se o verso original do samba “cem anos de primavera” por “campeões da nova era”, chamando a atenção dos mais jovens para a fase vitoriosa que o clube viveu a partir de 2019.

Na onda dos centenários, a Unidos da Tijuca trouxe para a Sapucaí, em 1998, “De Gama a Vasco, a epopeia da Tijuca”. O enredo apresentado pelo carnavalesco Oswaldo Jardim partia da viagem de Vasco da Gama às indias e chegava ao Clube da Colina que naquele ano completava 100 anos, em meio à sua história originária nas regatas até o futebol.

A imprensa de carnaval até hoje elogia a apresentação da Tijuca, mas o júri não gostou e rebaixou a escola do Borel para o Grupo de Acesso. Nesse grupo, a Acadêmicos da Rocinha contou, em 2003, o centenário do Fluminense com o enredo “Nas Asas da Realização, Entre Glórias e Tradições, a Rocinha Faz a Festa Dos 100 Anos de Campeão… Sou Tricolor de Coração!”. Em 2004 foi a vez do América ser o tema da Unidos da Ponte, escola de São João de Meriti. Mais uma vez Lamartine  Babo voltou aos desfiles, já que o Diabo era seu time do coração.

Outras representações

Outras torcidas também já cruzaram a Sapucaí. Se o Botafogo não teve um enredo em especial, os botafoguenses o tiveram. Em 2002, a escola de Vila Isabel contou a vitoriosa carreira de Nilton Santos na passarela. O clube também já havia sido referenciado em 1985 no enredo “E por falar em saudade” da Caprichosos de Pilares. O time não era campeão estadual desde 1968 e foi mote para um dos setores do enredo daquele ano.

Em  2020, a Mocidade Independente de Padre Miguel, ao homenagear Elza Soares,  trouxe o Botafogo nas referências afetivas da cantora. A Mocidade talvez foi uma das escolas responsáveis por fazer um movimento inverso do sambódromo às arquibancadas do Maracanã. Em 1985, depois do campeonato com o enredo “Ziriguidum 2001”, do carnavalesco Fernando Pinto, a torcida do Bangu cantava nas arquibancadas o samba que em fevereiro foi campeão.

O time da Zona Oeste, chegou à final do Campeonato Brasileiro, com o apoio de Castor de Andrade, também patrono da escola da Vila Vintém. Nos anos 1950, o Independente Futebol Clube deu origem à agremiação e foi referendado pela própria escola no desfile vitorioso de 1990, “Vira Virou, a Mocidade Chegou”, estreia de Renato Lage na escola. Padre Miguel não deixaria de falar de um Tupinambá Esporte Clube, time fictício, na cidade imaginada de “Tupinicópolis” de 1987.

Grêmio e Internacional encerraram o desfile da Unidos de Vila Isabel em 1996, unindo Noel Rosa a Lupicínio Rodrigues, num enredo sobre o Rio Grande do Sul, “A heróica cavalgada de um povo”, desenvolvido pelo carnavalesco Max Lopes.

Pelé e mais 10

Pelé é um caso a parte. Em 1983, na “Grande Constelação das Estrelas Negras” o “atleta do século” foi uma das figuras homenageadas pela Beija-Flor. Naquele mesmo temporal que caiu sobre a escola em 1986, ele foi mais uma vez saudado por Nilópolis. Não compareceu em nenhuma das homenagens.

Da Baixada fluminense veio ainda mais uma referência em 2016. A Grande Rio, escola de Duque de Caxias, trouxe para a avenida um enredo sobre a cidade de Santos o que necessariamente passou pelo clube da Vila Belmiro, por Neymar Jr. e pelo Rei.

De São Paulo, não faltou o Corínthians, nos enredos sobre o santo padroeiro do clube e muito popular no Rio de Janeiro. O Império da Tijuca assim o fez quando no enredo “O intrépido Santo Guerreiro” no Acesso de 2007.

A Tradição também representou o clube no enredo sobre Silvio Santos em 2001, lembrando a marchinha de carnaval gravada pelo apresentador “Doutor eu não me engano, o coração é corinthiano!”. Dois anos mais tarde, com o penta-campeonato garantido, Ronaldo Fenômeno, foi enredo na escola de Campinho, num desfile que deixou muito a desejar.

Entre as mulheres, a Rainha Martha teve uma feliz homenagem na Inocentes de Belford Roxo, em 2020, no Acesso.

Arrebenta…até parece o escrete de 70

O certo é que o futebol ganhou o gosto dos carnavalescos sendo representado como algo festivo. Um alento às mazelas de um país que amargou anos de ditadura civil-militar e que recuperava a democracia nos anos 1980.

Foi o que a Portela tentou traduzir em 1986 quando exaltava o “escrete de setenta” e ao mesmo tempo mostrava como a moeda americana ditava as regras no Brasil, “país da bola” onde “só deita e rola, quem vem com dólar”.

Lembrar todas as vezes que os destaques dos gramados foram referências para as escolas de samba não é tarefa fácil.  Mas o certo é que o futebol e o contexto histórico e cultural que o circunda ainda pode dar muitas histórias interessantes a serem contadas por fantasias, alegorias, canto, ritmo e dança.

J. A.

J. A.

Consumidor do jornalismo esportivo desde os anos 1980 quando conheci a revista Placar e vi pela primeira vez a Copa de 86.